21/11/2023 | Tiago Juliani
A pergunta é sempre feita como se existisse um órgão regulador pairando acima das páginas. Um comitê invisível, composto por gente que supostamente sabe, capaz de decidir o que tem valor estético e o que não passa de um amontoado de palavras. Uma instância silenciosa que distribui selos de autenticidade literária aos que “merecem” e recusa o resto ao campo do texto ordinário. Como se a literatura fosse um clube com poucos lugares disponíveis e uma porta de entrada guardada por fiscais de credencial.
Mas literatura nunca dependeu desse tribunal imaginário. Literatura não é aquilo que é aceito — é aquilo que acontece. Literatura não é o rótulo que dão — é o efeito que produz. A literatura se reconhece quando a linguagem não está ali para cumprir uma função prática, mas para instaurar uma experiência. Quando a frase não carrega o mundo apenas como informação, mas como forma de perceber e de sentir alguma coisa que não estava nomeada antes.
É claro que existem elementos que ajudam a construir essa categoria: densidade, ritmo, textura, escolha de imagens, o modo como uma voz singular se faz ouvir. Mas esses elementos não funcionam como checklist; funcionam como modos de operar o real. A literatura cria uma fissura dentro da própria linguagem. E essa transformação não depende de chancela institucional, de prêmios, de curadoria, de editora. Depende da força interna da escrita.
O tribunal invisível existe apenas porque nós ainda acreditamos que a legitimação da literatura se dá de fora para dentro. Mas é sempre o contrário. É o texto que inaugura o lugar. Não é o lugar que define o texto. E quando um texto consegue produzir esse efeito — quando o leitor sai dele com algo que não tinha antes — então pouco importa se a escrita veio de uma grande editora, de um blog independente ou de um caderno de anotações esquecido numa gaveta.
No fim, literatura não é um título: é uma experiência estética em linguagem. É o momento em que a frase deixa de ser instrumento e passa a ser mundo. É ali, naquele instante silencioso, que a literatura se reconhece — e se cumpre.